domingo, 29 de setembro de 2013

Do miniblog




Solidariedade + empatia + calor humano + cumplicidade = amizade – o metal mais raro e mais imitado na história da humanidade.

Eu vi: no meio da cidade violenta, um pombo sozinho atravessando a rua na faixa.

To follow, or not to follow, that's the Twitter.

De Augusto Monterrosso: "Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá." Prêmio de melhor miniconto.

TOC eletrônico é sem remédio. Cada era tem a torre de Babel que merece, né não?

Aranha malhada tem pernas grossas (provérbio tibetano).

Respeito todas as religiões, mas não entendo nem aceito alguns religiosos que não respeitam as convicções alheias.

Autocontrole é saber que espaço cada pessoa pode ocupar em sua vida e que palavras usar para lhe dizer o que pensa sem magoá-la.

Você muitas vezes não vê o que pensa que vê, e esse tem sido o motivo de tantos equívocos e desentendimentos entre os humanos.

Incentivar a leitura é coisa séria, e no Brasil é uma necessidade - a gente cresce pela leitura.

Bom senso informa: nem todo médico faz bem à saúde! Em casos complicados, consulte pelo menos três e adote práticas alternativas.

Político honesto é aquele que só se vende duas vezes se o primeiro comprador morrer antes dele.

Era uma menina de tornozelo irado, corpo malhado e cabeça feita. O que estragou tudo foi o coração mole.

Dentro do Brasil, tantos brasis; nos EUA, tantos euas; na China, tantas chinas. Dentro de cada pessoa, tantas pessoas.

Ser gente da melhor qualidade dispensa qualquer rótulo.

Ingratidão e burrice são amigas inseparáveis. Pode conferir.

Gostar é fácil, mas é preciso mais que isso pra conviver. A rotina carrega uma mochila cheia de camundongos esfomeados. Nada contra a rotina, até gosto dela. Mas que os camundongos são um risco, ninguém pode negar. O nome deles explica: o chefe do bando se chama egoísmo, mas há outros nomes significativos, como grosseria, comodismo, indiferença, interesse e deslealdade.

A internet é uma floresta, mas há clareiras que vale a pena conhecer.

Baby, flanar não tem nada a ver com flanela.

Segredo revelado é uma verdade que usava burca e virou stripper.

Testou o equilíbrio quando a megassena acumulada saiu pra ele sozinho. Passou a ter vertigem de altura.

Solidão é ver tudo nos lugares e ninguém para desarrumar.

Ser simples não é ser primário nem carente nem pobre. Ser simples é um charme que pouca gente conhece. E muitos não conseguem entender. Pena.

Arrogância são duas pernas de pau cheias de cupim.

A vida é um encontro marcado ao qual é melhor não faltar, porque não há outra chance.

Perdeu todas as boas oportunidades por dar importância demais à opinião dos outros. Nesse particular, saber usar a sintonia fina é decisivo.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

CANÇÃO PARA ROY E PRIS



Eloisa Helena Maranhão.



Para os que se recusam a se iludir. Ou, mesmo sem recusa, não conseguem se enganar.





“Desilusão, desilusão, danço eu, dança você,
na dança da solidão.” (Paulinho da Viola)


Eram inconquistáveis. Nem música adiantava. Tinha cantado algumas para eles, puxava da memória as melodias mais macias, as palavras mais sedutoras, e nada. Sentava e cantava, o coração naquela expectativa de resposta.
Se lembra da fogueira
Se lembra do balão
Se lembra dos luares, do sertão...
Não, andróides não devem recordar esse tipo de lembrança, mesmo os de última geração. Procurava outra música.
Images of broken light which dance before me like a million eyes
They call me on and on across the universe
Thoughts meander like a restless wind inside a letter box
Theys tumble blindly as they make their way across the universe
Jai guru deva. Om.
Nothing’s gonna change my world…
Não adiantou. Nem sax tocando Us and Them, nem Vangelis; eram imunes à música, também.
Olhava para eles de soslaio, eles encarando-a muito direta e friamente como “perdeu alguma coisa aqui?”. Desviava o olhar, era insustentável o que via dentro daqueles dois pares de olhos tão claros, tão sombrios. De tanta luz refletida. Só entendia a acusação, a indiferença e um “vocês hão de me pagar”. Não sabia qual era a dívida, mas entendia a cobrança.
E se acenasse, pagasse o mico de acenar, rir para eles, jogar beijo, piscar, implorar amizade, mas assim tão diretamente espantaria os dois, melhor tentar aproximação lateral, continuar na conquista, mesmo que levasse milênios para isso. Tinha tempo de sobra. Tempo era tudo que restava, sempre.
Resolveu contar uma história, voz baixa, mas que desse para ouvir, passou a manhã se preparando, e à tardinha, quando a respiração fica mais lenta e tudo que queremos são histórias, começou.
Conta-se que quando se miraram, a jangadeira e o pirata, jangada e caravela ladeando-se, numa dança sobre as águas, numa sedução que já não se lembravam como fazia, conta-se que o sol cerrou os olhos, deixando espaço para que se mirassem sem se cegar.
A noite desceu ali mesmo, sobre o mar antes avermelhado, e fez-se grande silêncio, carregado de significados. Nos olhos dela ele viu a lua, e ela sonhou estrelas nos cabelos e barba do pirata, e decidiu que singraria os sete mares com ele.
Pois agora, mesmo havendo sol quente, sede nunca saciada, o suor escorrendo salgado na boca seca, a pele ressecando a cada dia, agora havia lua e estrelas. E a noite saberia se fazer para os dois.
Conta-se que ainda hoje, para quem saiba ver, na hora da penumbra, quando o sol desce as cortinas e a noite começa a subir, ainda se vê jangada e caravela ladeando-se no silêncio do Mar Oceano.
Também não se deixavam enredar pelas palavras. As teias que tentava tecer não serviam de laços, nem por momentos.
Pareciam tão seguros, indiferentes a tudo de fora, centrados em si mesmos, só ela era estranha, forasteira, sentia o sol ardendo a chuva gelada, tremia de frio, de calor, de solidão, era só ela?
Sentia uma inveja afiada daquele vínculo entre os dois, aquela lealdade e união que só os condenados e absolutamente desenraizados podem ter, estrangeiros em terra hostil. Um era tudo que restava ao outro. Melhor ficarem juntos.
Começou a inventar brincadeiras, fabricava balõezinhos coloridos, enchia de ar quente de fogueira, e soltava, o céu noturno ficava repleto deles, no lugar das estrelas que já não podiam enxergar, eram balões gritando socorro nas correntes de vento. Girava centenas de piões prateados dourados furta-cor, vai que andróides gostam de cores metálicas, futuristas, punha pra rodar e ficava horas olhando. Tempo era tudo que restava. Pulava corda na frente deles até cair de exaustão. Nem, também.
Um dia resolveu fazer comida para eles. Devia ser doce. E cremoso. Com café e chocolate. Acordou e começou a preparar, mãos pacientes de cozinheira alquimista. Cheiros cores sabores.
Ingredientes:
200 g de biscoitos champagne
3 ovos
250 g de queijo mascarpone
75 g de açúcar
50 g de chocolate amargo em pó
½ xícara (de café) de  rum
3 xícaras (de café) de café

Bater as claras em neve. Juntar o queijo mascarpone, misturando delicadamente. Em seguida, acrescentar as gemas, o rum e o açúcar, obtendo um creme denso e homogêneo.
Fazer o café e deixar esfriar. Banhar os biscoitos nesse café, um por um, e colocar numa forma de cerâmica, feita de argila apanhada de manhã nos rios, úmida e fria, e cozida ao meio dia num forno bem quente.
Quando tiver a primeira camada de biscoitos completa, cobrir com o creme, fazendo camadas de creme e biscoitos. A última camada deve ser de creme. Pulverizar a superfície com o chocolate em pó.
Levar a repousar por duas horas antes de servir.
Bateu chantilly fresco perfumado com vagem de baunilha sem sementes, quando começou a cair a noite e esfriar, para colocar em cima. Duendes costumam vir de noite se alimentar de papa de aveia. Vai que andróides também se atrairiam por aquele doce.
Não vieram. Ela dormiu de tanto cansaço e sonhou.
Estavam em cima de uma montanha tão alta, imensa, com neve no pico, solitários na companhia que faziam um ao outro, olhando o horizonte lá de cima. Ela começou a construir uma escada na encosta da montanha, degrau por degrau, uma torre de babel que a levasse a eles, mas escorregava, respirava com dificuldades conforme subia, o coração disparava, não ia agüentar. Precisava tanto daquele contato, um olhar, uma palavra, um sorriso, não tinha nada, nem a viam ali, eles eram eles e deles. Ela não existia.
Quando acordou, cheia de gemidos enroscados, viu que estavam dormindo, lambuzados do doce que tinham roubado durante o sonho dela.
Resolveu radicalizar. Ficava deitada na linha do trem, de olhos fechados, embaixo do sol. Ou andando por ela, equilibrando nos trilhos. Se o trem viesse eles haveriam de avisá-la, dar um grito, até andróides aprendem a amar a vida. Avisaram nada. O trem também nunca veio.
Uma manhã tudo escureceu. Nuvens cinzas negras, ia cair chuva forte. Construiu uma cabana, deixou espaço para eles, um caramanchão bem seguro, passou o dia erguendo paus, cobrindo telhado, fechando fendas. Entrou lá quando a chuva começou, e eles ao relento. Nem aí. Ensopados, lado a lado, impassíveis, esperando a chuva passar. Gelados.
Amanheceram pingando água da chuva, dependurados de ponta-cabeça numa árvore, como morcegos cegos, braços cruzados, deixando secar. Ela dependurou-se, também. Braços cruzados. Era dia verdinho, recém-nascido da chuva anterior, sol novinho, quase recém-nascido da explosão primordial. Deu uma sensação de que aquele era seu dia, ia enfim conseguir contato.
Ficou ali de ponta-cabeça, cantando mandingas, desejando e esperando.
Foi a primeira vez que ouviu a voz de um deles.
Hora de morrer, Roy declarou em voz alta. Caíram dissolvidos, os dois.
Ela continua dependurada na árvore.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Pensando em Wim Wenders










A ornitologia
não prevê híbridos nem bichos tristes
mas tem por objeto apenas
aves
– talvez asas.

A solidariedade
com seus pares de asas instantâneas
e fugazes
dispensa documentos.

Um anjo não seria a data certa.
Os anjos fluem no tempo e não têm fim
cadastro ou classe
– são marcas de fantasia sem empresa
e se eles amam
o amor que irradiam é de outra dimensão.

Não sendo assim um anjo será
Lúcifer, o anjo ambíguo,
se não o amante ideal, perfeito e malvestido.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

SENHORA DO TEMPO. GUARDIÕES DA MEMÓRIA

Por Vera Guimarães


 Patrícia Caetano Ilustrou



Hoje esta senhora do tempo destaca alguns de seus parentes que muito fizeram e fazem pela preservação da história da família. Há os que contam casos, os que fazem festas e reuniões, aqueles que emprestam seus sítios, os que convidam para suas casas, os que fazem rir com casos saborosos envolvendo antepassados, os que transmitem receitas culinárias, os que transportam parentes em visita a outros, os que enviam cartões em datas importantes, os que guardam na memória o dia do aniversário de muitos, os que se esforçam para destrinchar a genealogia, os que sabem o nome de todos, os que rezam pelos outros, os que proveem recursos materiais aos que precisam.

Uma dessas pessoas foi nossa irmã Zila, que já se foi deste mundo, autora do livro PROSA NA VARANDA, (fig. 1) registro de conversas dela com nossa mãe e nosso pai e muitas outras pessoas da família, do que resultou valioso patrimônio imaterial, que mostra como se vivia, quem éramos, o que pensavam e como agiam nossos antepassados e seus contemporâneos.

Aqui ela reproduz relato de nossa mãe sobre bodas de ouro de um casal de tios, festa que aconteceu em fazenda-cenário de toda nossa vida.

“Agora vamos às Bodas de Ouro do casal, que na época morava na Vargem Alegre. Mas a festança foi no Olhos d´Água, onde morava a filha deles, Sá Mariquinha, que era casada com Sô Gandini, italiano que veio fazer a ponte antiga sobre o Rio das Velhas, em Traíras. Por ali ficou, casou e tiveram muitos filhos, Como no sobrado deles tinha luz elétrica, mais conforto, salão de festas, de refeição, com mesa e bancos enormes, terreiro na frente e nos fundos, ficou acertada a festa. Tudo foi muito bonito, foram pessoas de vários lugares, inclusive o fotógrafo de Belo Horizonte, o Higino Bonfiglioli, que tirou muitos retratos der famílias dali, inclusive da nossa. A capela não cabia o povo todo, mas as casuarinas davam sombra, como as outras árvores que enfeitavam a frente do sobrado. O celebrante foi Padre Castanheira, de Portugal, que foi para Traíras e assistia toda a região. De sábado para domingo, teve um baile de arromba no salão de cima, coisa chique, e no outro dia teve festa o dia todo, comida, mesa de doces, mesa de café, leite e quitandas, o que deve ter gasto muita gente ali fazendo. E os preparos das carnes, que não arrumaram num dia só? A vaca que mataram chamava Espanhola. Ela foi para o Riachão, para engordar, e voltou de lá roliça. Fez um farturão. Não sei se teve batuque, mas deve ter tido, pois todo mundo por ali gostava. Tiraram um retrato que é uma beleza, de um tanto de cavaleiros encarrilhados, no terreiro da frente. Quase ninguém tinha outra condução a não ser cavalo ou carro de boi. Lembro que chegaram na Vargem Nova todos da  família de Nhô Luis e Lendá, muitas filhas deles. Lembro delas sentadas no caixão da cozinha, aqueles altos, de madeira, com tampas de suspender e que eram para guardar mantimentos ou roupas de cama. Uns falavam tulha e hoje é arca. Aí eu era moça de namorar. Acho que elas ficavam ali esperando o almoço. Usava jantar todos na cozinha e conversar ali, à vontade.”

Pois, então, este foi um dos muitos enredos descritos no livro PROSA NA VARANDA, de nossa irmã Zila, que, assim, garantiu parte da preservação do patrimônio imaterial da família.   

O cenário de tantos eventos significativos de nossa família foi esse casarão. Nele aconteceu a festa de bodas de ouro descrita acima e muitos outros encontros.

Durante muito tempo, desde que me lembro, frequentei essa fazenda, que, na minha infância, pertencia à família de querida prima, que nos acolhia com carinho, quitandas e jabuticabas sem fim.

A fazenda com suas jabuticabas sem fim                        Hoje, o casarão em reforma

Hoje, adquirida e preservada por um sobrinho, se firma como mais um marco concreto de nossas lembranças. A todos esses parentes que conservam suas casas, esse patrimônio material da família, nosso reconhecimento e nossa homenagem.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

ANA MARIA DOS ANJOS II- O RETORNO: SURTADA NO SÓTÃO




Eloísa Helena Maranhão





“Não é muda a morte. Escuto o canto dos enlutados
selar as rachaduras do silêncio. Escuto seu dulcíssimo
pranto florescer meu silêncio gris.” (Alejandra Pizarnik)




No princípio era o nada. No fim era o nada, também. Que demônio ou deus tinha inventado que o meio era alguma coisa que não o nada?
Ana Maria dos Anjos, olhando o rebanho de carneiros que pastava lenta e silenciosamente do outro lado da rua, começou a dissolver-se em água, primeiro flutuando, depois ficando encharcada por dentro e por fora, a pele enrugando toda, afundando até que se dissolveu completamente, mas com sua consciência funcionando normalmente. Seja lá o que for normal. Tudo nela se dissolvera, menos sua consciência. Por enquanto, que mais tarde vocês verão até onde chegou.
De um lado da rua onde seu sótão ficava tinha um rebanho de carneiros pastando numa pracinha verde, e do outro uma manada de porcos, todos marrons, diferentes das ovelhas que eram creme clarinho ou brancas. Ana Maria decidiu-se mandar o bebê engatinhando até as ovelhas, e a cadelinha até aos porcos.
Era uma lindeza de se ver aquele bebê gorducho, com covinhas nos braços e pernas, todo rosadinho de sol, engatinhando em direção às ovelhas. Mas a cadelinha era mais linda ainda, toda vestida de branco, de organza de seda muito leve, quase transparente, toda bordada em pedrarias e fitas coloridas de seda formando florzinhas, uma cadelinha mimosa vestida de noiva indo ao encontro da manada a que se destinava.
O bebê, seu filho e único dos amores de Ana Maria, juntamente com a cadelinha branca, de branco vestido bordado, engatinhava peladinho, vestido apenas com uma fralda descartável, um boné de marinheiro azul e branco e meinhas nos pés fofinhos, ao encontro das ovelhas a que se destinara.
Ana Maria dos Anjos olhava ansiosa e com muito cuidado para os dois lados da rua, postada na janelinha de seu sótão, acompanhando o destino do bebê e da cachorrinha.
Por que enviara seu bebê e sua cadelinha tão amados para os porcos e às ovelhas? Acaso não sabia que alguma coisa de ruim podia acontecer com um deles, até mesmo os dois, um atropelamento ao atravessar a rua, uma bala perdida, uma enxurrada levando-os pra um bueiro e o afogamento, uma insolação seguida de desidratação, um raio na tempestade que se aproximava, tanta coisa poderia ocorrer nas ruas, ao relento, fora do abrigo doméstico onde tudo parecia mais seguro. Sim, ela sabia de todas essas hipóteses e muitas outras mais, aviões caindo, trens desgovernados, terremotos não detectados, carros e caminhões desembestados dirigidos por alguma besta alcoolizada, sim, Ana Maria dos Anjos sabia mais que qualquer pessoa dos perigos que andam à solta e rondam nossas vidas. Mas ela precisava mandar o bebê e a cadela para a rua, era necessário e absolutamente impostergável, já que o homem vermelho havia lhe aparecido novamente e dado as ordens. Não, não eram ordens verbais, o homem não falava com ela dali do canto do sótão onde estava e a olhava com seus olhinhos rasgados de deus hindu (ou seria chinês, perguntava-se Ana Maria dos Anjos, mais uma vez sem conseguir resposta alguma), pois o homem vermelho de longuíssimos braços a olhava e ela sabia o que devia fazer, ele lhe ordenava como agir dentro de sua própria mente, como uma telepatia. Está na hora, Ana dos Anjos – ela não entendia por que ele nunca a chamava de Maria também, abreviando seu nome tão bem escolhido pela mãe, tias e avós mais de quarenta anos antes, está na hora de enviar seu bebê e sua cadelinha à rua, um aos carneiros e outra aos porcos. E se está na hora, a hora é essa, faça e não discuta. Aja. Sim, você tem livre arbítrio, Ana dos Anjos, pode escolher se manda o bebê aos porcos e a cadela às ovelhas, ou a cadela aos porcos, ou os dois aos porcos, os dois às ovelhas, ou, ou, ou. Você é livre, Ana dos Anjos, tem liberdade de escolha, como os espíritas tanto desejam e pregam, dizia-lhe mansa, pausada e telepaticamente o homem vermelho, agora vá e faça, avante!, go, go!, voilá!, e apesar do livre arbítrio – ou talvez justamente por ele mesmo - alea jacta est.
Naquele dia começou a chover. Ana Maria ainda não se dissolvera, isso foi depois da chuva, aquela chuva quase primal, um temporal ruidoso, carregado de raios estridentes e trovões atormentados, uma chuva de evaporação das muitas águas dos rios, mares, lagos, lagoas, açudes, represas, calotas polares descongelando, águas que teimavam em não ficar paradas e tranqüilas num planeta de chuvas, terremotos, maremotos, tsunamis, onde um raio de sol leva 8 minutos para chegar do sol aqui, e só saberíamos se o sol explodisse ou esfriasse ou acontecesse qualquer outra coisa com ele, 8 minutos depois, quando então veríamos a explosão ou a outra coisa qualquer.
Pois isso tudo dava em Ana Maria dos Anjos, postada na janela de seu sótão, uma intranqüilidade, uma sensação de estranheza, e para passar o pavor que tomava conta dela ela se deitava no chão, esticada como uma estrela de cinco pontas, mas isso não resolvia o problema – nem a estranheza nem o pavor – por que deitada ali sentia o chão se mover sob ela, a rotação da Terra atingindo hum mil seiscentos e setenta e quatro quilômetros por hora, vamos ver em números que dará mais pavor ainda que escrito – 1.674 km/h, é rápido pra cacete, e Ana Maria dos Anjos suava e angustiava-se com essa velocidade toda da Terra rodando em torno do Sol e, pior ainda, rodando sobre si mesma também.
O mundo era um lugar vertiginoso, violento com suas explosões e buracos prontos a engolir até a luz, a vida era assustadora e nada mudaria isso, nem religiões, nem filosofias, nem monges recitando a sílaba omm, nem freiras rezando milhões de terços, nem hippies de mãos dadas concentrando-se na paz universal, nem psiquiatras receitando seus medicamentos, nem psicoterapeutas com suas terapias mágicas, nem budistas meditando em ondas alfa, nem místicos fazendo mentalizações e relaxamentos, nem desesperados entupindo-se de drogas ou correndo com seus carros, o universo era apavorante, como deveria ser para todos os humanos que tivessem cérebro pensando. Quando pensava, a única importância que urgia e rugia era: preciso morrer. Desejo morrer. Cansei de viver. Viver é perigoso e cansa, como cansa. Viver é como estar enterrado num terremoto, sem saída, morrendo aos poucos. Morrer de vez é bom, é saudável, alivia e soluciona. Ana Maria dos Anjos não tinha problemas com a morte, não a sentia como estranha, era a única não-estranheza, e essa ela conhecia e amava. Estava a um centímetro dela, Ana Maria e a morte.
Talvez fosse esse o maior defeito e problema de Ana Maria: pensar demais; cada dia um pensamento novo, uma estranheza nova, ou antiga, que voltava a incomodar. Como os sentimentos ilhados do Fagner, pensar incomoda, sentir dói; e a meio caminho dos pensamentos e sentimentos, sem saber o que fazer com eles, Ana Maria foi se introjetando a si mesma e ao mundo, numa tentativa desesperada de ser rúcula, agrião, quiçá um rabanete. Por que a mãe da Rapunzel precisava tão desesperadamente de rabanetes, pensava Ana Maria dos Anjos, sem respostas e sem consolos. Viver não era confortável para ela, que pensava e sentia demais.
Sentia o sol, a chuva, os raios, as rajadas de ventos em si mesma, na sua pele, entrando pelos poros e tomando conta dela. Era como um ataque epilético, aqueles raios chuvas trovões ventos e sóis dentro dela e iam se transformando em lesmas gosmentas, tomando forma, criando massa corpórea, e saíam para sua pele, de dentro para fora, aqueles vermes que cuidariam de seu corpo na morte, mas já agora anunciando sua presença.
Nessas horas, mais que nunca, sentia necessidade de rotina, de um canto seu, um lugar na cama, marcado por seu corpo, comidas conhecidas, roupas velhas e já muitíssimo usadas, palavras já ditas há anos, ou nenhuma palavra, de preferência. Ana Maria dos Anjos já não suportava sair de casa, mas precisava sair. E fazer coisas. Tomar decisões. Pensar. Sentir. Reagir. Agir. Viver exigia dela algo que ela não suportava dar, ou nem tinha para dar.
Nesse impasse passou a sentir uma necessidade extrema de cortar os pés, a sola deles, assim bem cortadinhas devagarinho, passando a lâmina do estilete, fazendo cortes que aos poucos começavam a gotejar sangue, até formar um fio fininho escorrendo e pingando. Cortava em fatias paralelas, bem cronometradas, pra ficarem todas iguaizinhas em tamanho e profundidade. Primeiro apenas passava a lâmina afiadíssima, fazendo sulcos rasos e longos, depois ia aprofundando como criando pequenos igarapés fundos e curtos. A dor que sentia era muito bem vinda, era uma dor que aliviava, que desviava a atenção do que estaria pensando ou sentindo.
Além disso, tinha o ganho secundário de não poder sair com os pés feridos daquele jeito, impossibilitados de pisar no chão, com risco de infeccionar ou continuar sangrando, e era ótimo ser obrigada a ficar no sótão, no máximo olhando pela janela.
Vejam só como funciona a vida, foi só Ana Maria dos Anjos se distrair com o estilete nas solas dos pés e pensamentos sobre Rapunzel e rabanetes, budistas, monges, hippies e outros desesperados, que quando novamente prestou atenção nos lados da rua a tragédia se tinha instalado.
Seu bebê gorducho e rosado era agora uma massa no chão, pisoteado pelos mansos e inofensivos carneirinhos, estava ali do outro lado todo amassadinho como um pastel. Nem tinha chorado, acho, que se tivesse feito algum barulho Ana Maria dos Anjos talvez tivesse notado, mas de qualquer modo não teria como intervir ali da janela do sótão com seus pés feridos e sem condições de sair.
Desviou o olhar pro outro lado, ali onde sua cachorrinha fofa vestidinha de bordados brancos, fitas, rendas e sedas estava, e só o que viu foi o vestidinho ensangüentado, esticadinho e todo mastigado no chão, sem nem um pedacinho de cachorro dentro, devorada que fora pelos porcos marrons.
Ana Maria dos Anjos pensou, num lampejo de lucidez, antes de dissolver-se na chuva, que o negócio era aprender-se a ser rúcula, agrião, nabo, rabanete. Como os da mãe da Rapunzel.