sexta-feira, 4 de março de 2011

NOBRES DO SERTÃO

Por Ana Laura Diniz

Tudo é sertão, tudo é paixão
Se um violeiro toca
A viola e o violeiro
E o amor se tocam


(Almir Sater/Renato Teixeira)


Vou logo dizendo que embora não seja expert em música, e isso vocês já devem ter notado, sou muito sensível a ela de maneira bem eclética. Não entendo vida sem escala, melodia, cadência, ritmo, pausa. E pensar que a pausa, muitas vezes, é o que faz uma canção ganhar mais significado. Tendo letra ou não. O silêncio quase imperceptível entre uma nota e outra, um semi-tom. Tudo isso me fascina. E seguindo a toada da semana passada, falo um pouco mais do sertão – e devo parar com esse estilo por aqui – no meio dos seus nobres, aqueles que nunca esqueceram a sua origem. 
Já perceberam? Os nobres do sertão carregam na aparência o aspecto desidratado de eucalipto. Suas influências variadas vão do romanceiro medieval, que culminou diga-se passagem na época de Elizabeth, da Inglaterra, ao cancioneiro do nordeste brasileiro, com cordéis e toadas. São compositores, poetas, cantador-cantor, violeiro-violonista que percorrem Brasil afora para manter acesa a tradição da música tropeira, mais conhecida como caipira.


Engraçado é que moro no interior de minas e, ao contrário dos que muitos imaginam, aqui no Sul de Minas as rádios não dão vez para esses artistas.
Grandes nomes como Teddy Vieira e Lourival dos Santos, João Pacífico e Raul Torres, Cascatinha e Inhana (puxa, como já cantei “Índia” sentada na varanda com meus pais e irmãos, em noites de lua cheia. Também é muito bonita a versão mais moderna de Eduardo Dusek), Alvarenga e Ranchinho (e suas inesquecíveis caveiras que se amavam. Também adoro as versões modernas de Tangos e Tragédias; e mais ainda a de Sérvio Túlio), Pedro Bento e Zé da Estrada foram tenebrosamente massacrados pelo capitalismo, pela cultura de massa, acompanhados pela industrialização e pela urbanização da sociedade brasileira, especialmente ao longo do século 20, época de rompimento do “equilíbrio ecológico e social” desse modus vivente.
Mas, apesar da sua desintegração, aspectos dessa cultura ainda sobrevivem na memória de boa parcela da população brasileira. Prova disso são nomes como Tonico e Tinoco, Sérgio Reis, Renato Teixeira, Pena Branca e Xavantinho, Tião Carreiro, Zé Mulato e Cassiano, Almir Sater, que ainda bem sobrevivem.


Pseudotropeiros como os famosos Chitãozinho e Xororó, Zezé di Camargo e Luciano, Gian e Giovanni, e derivados, embora insistam em dizer sobre suas raízes, essas duplas se enquadram em um novo estilo de música que se consolidou a partir da década de 80, mais fortemente no início dos idos de 90: o chamado “sertanejo romântico”, o “neo-sertanejo” ou o “sertanejo pop”, que perdoe aos menos uma de minhas irmãs, não gosto. A viola foi substituída pela guitarra, o contra-baixo elétrico, o teclado, a bateria e, às vezes, por instrumentos de percussão. Da música caipira de fato resta a voz aguda, e nem sempre afinada, de algum cantor.


Mas os tropeiros são muitos, ainda que os nomes que rompam a fronteira do mercado sejam poucos. O que vale em geral é a “lei do cão”: o ostracismo implacável a quem não aparece nas ondas do rádio ou da televisão. Dificuldade que nem o programa “Viola, minha viola”, apresentado pela também memorável Inezita Barroso, consegue evitar.

Se há alguma sorte nessa roda de tropeiros – e existe - é só para dizer que toda regra há pelo menos uma exceção. Porque seria impossível não mencionar um artista que se mantém no auge, ainda que totalmente desconhecido pela grande massa.

Vou cantar no cantori primero
as coisa lá da minha mudernage
que me fizero errante violêro
eu falo sério num é vadiage
e pra você que agora está mi ovino
juro inté pelo Santo Minino
Vige Maria que ôvi o qui eu digo
si fô mintira mi manda um castigo
Apois, pro cantadô e violêro
só hai treis coisa nesse mundo vão
amô, furria, viola, nunca dinhêro
viola, furria, amor, dinhêro não.


Já sabem de quem se trata? Elomar, e seu “Violeiro”.



É verdade. O homí, arre égua!, é um dos maiores referenciais da produção cultural popular, mais especificamente nordestina, extremamente apreciado no meio musical e intelectual. Seu repertório é embasado na vida sofrida de povoados castigados pela seca, e a sua técnica e qualidade sonora são de alto nível, a ponto de poderem ser tranqüilamente apresentadas e ovacionadas nos mais refinados conservatórios de música erudita.



Tudo isso pra dizer que o que caracteriza esses nômades artistas, de alma livre e tementes ao “Pai Todo Poderoso", é a força da tradição oral. Afinal, assim como os cancioneiros que vagavam de “reinos a reinos”, os tropeiros carregam mais que a arte: o papel de repórter que informa os causos das outras bandas.

E se analisarmos a história da música popular brasileira, incluindo a comercial voltada ao mercado fonográfico, é fácil traçar que em diferentes momentos houveram retomadas para esse tipo de música caipira de raiz. Até a amada e sempre atual Elis Regina interpretou uma canção que se tornaria um dos maiores clássicos de Renato Teixeira, “Romaria”, evidenciando que o bom da música brasileira não está apenas na mistura das tendências, mas principalmente no que diz respeito às origens do seu povo.




Cascatinha e Inhana: "Índia"


Elomar: "O Violeiro"






Sérvio Túlio: "Romance de uma caveira"