quarta-feira, 2 de março de 2011

ENTREVISTA COM O POETA RICARDO AUGUSTO DOS ANJOS


Por Ana Laura Diniz

Ricardo Augusto dos Anjos morava lá na Ponta D’areia, em Niterói-RJ, na década de 60. Lugar bonito onde tinha o solar da condessa Pereira Carneiro, dona do Jornal do Brasil. Isso no tempo em que o Jornal do Brasil ainda era um jornal. Mudou, casou, descasou, casou, mudou, e mudou novamente. Angústias de poeta. Sina de buscar cais.

Apresentado a mim via MSN pela jornalista, poeta e parceira Esther Lúcio Bittencourt há quase seis anos, o encontro real ainda é promessa. Embora verdadeiro seja o sentimento de amizade e admiração que sinta por ele. Muitas conversas a perder horas, a emendar dias. Silêncio mútuo em algumas temporadas. Em Teresópolis, onde mora, o poeta se renova a cada “oi”, indagação, suspiro.

Puro deleite. Honradíssima, caros leitores, o poeta.

Primeira Fonte (Pêéfe) – Como define a poesia?
Ricardo Augusto dos Anjos - Expressão verbal e artística da loucura de um poeta.

Pêéfe – Quais os seus escritores e poetas prediletos? Que qualidades eles têm que despertam o teu interesse?
Não tenho predileções. Todos os peixes que caem (ou caíram) na minha rede de leitura eu provo. Aí então eu engulo ou cuspo fora.

Pêéfe – Quais foram as suas influências?
Li muito Fernando Pessoa, Augusto Frederico Schmidt, Vinícius, Traduções de Walt Whitman, e poetas “femininos” como Hilda Hilst, Marly de Oliveira e Cecília Meireles. E me tornei poeta lírico. Mais tarde, curti os poetas neoconcretos do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (SDJB), tendo ensaiado alguns poemas do gênero, procurando uma contenção verbal. Logo após voltei ao discursivo, mas despojado.

Pêéfe – Se comparasse a produção poética das décadas de 60 e 70 com a atual, o que diria sobre poesia e o fazer poesia?
Uma geléia geral, um caldeirão de cultura, manifestações ousadas de música, artes plásticas, e a poesia aí, borbulhando, em retaguarda (volta aos anos 50, no agon, na solidificação do modernismo de 22) e na vanguarda anárquica do happening paralela ao rigor do concretismo e neoconcretismo (sem a tecnologia de ponta de hoje); poesia panfletária, revolucionária, de resistência política e editorial. Hoje é uma linha auxiliar disso tudo, com revisões conceituais na ânsia do novo a começar do zero, na utopia de um big-bang literário, gênese criativa, enfim, poiesis (criação, ação, fabricação), o desejo de criar a partir do incriado, numa ação demiúrgica.

Pêéfe – Qual o papel que a poesia teve nesse passado pouco distante e qual o papel que exerce atualmente? Existe algum poeta ou produção poética que mereça destaque nos dias de hoje? De quem ou qual?
A primeira parte respondi acima. Quanto a autor, voto no meu amigo Marcus Accioly, pernambucano, de quem João Cabral de Mello Neto disse ser “um poeta de primeira categoria”. Drummond também reconheceu em Marcus “uma poesia tão rica e universal”. Suas obras “Nordestinados” e “Sísifo” fazem dele um dos mais criativos e fascinantes poetas brasileiros da atualidade.

Pêéfe – Poesia é algo necessariamente atrelado à emoção ou pode ser estritamente racional? É possível "poetar" sem se sensibilizar? Qual é a "liga" de uma poesia?
Algo atrelado (aliás, poesia é algo) mais aos sentimentos que geram emoção. O racional vem depois, na "construção" das palavras com sua carga de emoção. Isso é a “liga”.

Pêéfe – Como se dá o seu processo de criação? Você tem alguma rotina? Como é a construção, a palavra, o verbo?
Não sou poeta profissional. Confio muito na inspiração. Alguma transpiração. Sou um poeta passional. Logo, mais retina interior que rotina exterior. Construção? Trabalho com ruínas emocionais, parto da desconstrução para a construção, que posso chamar de discurso analítico. Sem sigilo, pois a vida não é um crime perfeito.

Pêéfe – Você acredita em novas formas de se fazer poesia ou acha que já foi tudo feito?
É um círculo. Tudo foi feito e não foi feito. O fazer (fabro) é contínuo até fechar o círculo que nunca se fecha. Quem ganha com esse moto-perpétuo é o mercado editorial.

Pêéfe – Você se preocupa com o caráter efêmero ou perene do seu trabalho?
Essa preocupação quem deve ter é o leitor que porventura me conheça. Sou mais inédito que édito. Com apenas duas pequenas publicações que já se perderam no tempo, sem repercussão após os lançamentos.

Pêéfe – O fato de ser neto do poeta Augusto dos Anjos, famoso pela originalidade temática e vocabular, já o ajudou ou atrapalhou em algum momento? Por quê? Poderia de alguma forma avaliar a obra do seu avô?
Sou mais conhecido como neto de Augusto, sobre quem já fiz cinco palestras em espaços culturais do Rio, Niterói e Teresópolis, onde estou radicado há quatro anos.

Sobre a relação da poesia dele com a minha, o olhar é de Nelly Novaes Coelho, mestre em literatura, e editora de meu livro Agrolírica (1974): “Ricardo dos Anjos situa-se em pólo oposto ao da tragicidade letal que singularizou o pensamento de seu avô. Energia vital, solaridade, lucidez ante a dramática/luminosa condição humana e a nova linguagem que deve expressá-la: é o que define esta Agrolírica, que nos coloca diante dos fenômenos mais típicos da poesia atual: o rigor construtivista da palavra fundido com um erotismo radical e telúrico, evidenciado na identificação Mulher/Terra, verdadeira ponte vivencial entre o Homem e seu Encontro com uma nova práxis e uma nova consciência ontológica”.

Agora, quanto a Augusto dos Anjos, sua única obra – EU –, plena de expressivos e impactantes poemas, dá a medida exata e antecipada (desde a sua época, e hoje confirmada) da modernidade, da vanguarda, ou pré-vanguarda do autor.

Como assinalo em minhas palestras, Augusto é poeta de e para todas as gerações ou exagerações ou degenerações, sobretudo em tempo de crises. Crises pessoais e coletivas, sociais – via opressão econômica e/ou brutalidade física. E também crises espirituais, que estão sempre acopladas, interligadas às demais crises, ou surgem destas.

O que mais impressiona é a sua contextualidade através dos tempos. Nesse sentido, o EU sempre foi e ainda é bem atual, ou melhor, contextual, exprimindo e espremendo, por exemplo, a amarga realidade brasileira. Um grito de revolta contra as injustiças, sejam elas individuais ou sociais ou até tecnológicas; contra a opressão exercida sobre os excluídos. Enfim, Augusto dos Anjos e sua poesia é crítica e autocrítica do homem violento e violentado. Poeta das gerações em revolta, da margem, do homem doente de si mesmo, poeta da morte. Daí a sua popularidade, mediante a identificação com todos os EUS, todos os EGOS, apesar da linguagem que emprega, tida como “difícil”, hermética.

Aliás, a linguagem cientificista e erudita, mixada à linguagem mais acessível, mais prosaica do cotidiano, é outro aspecto que mostra ainda Augusto dos Anjos crítico social, preocupado e revoltado com a devastação ecológica e das comunidades indígenas, as exacerbações morais, a corrupção, a prostituição, além de cantar a decomposição do ser, e o amor sem amor que a humanidade inspira.

Pêéfe – Que dica você daria para essa juventude que sonha em ser escritor, poeta?
Leia bastante e escreva. Cuide do léxico e de suas “licenças”. Escreva e rasgue se não achar que ficou bom. E volte a escrever. O primeiro leitor e crítico deve ser você mesmo. Satisfaça-se. Não aprisione sua expressão.

                                             ***

Antecâmara do Espanto
Ricardo Augusto dos Anjos


1.
Não sei o que primeiro
-- pranto ou espanto –
estalou na alma
como um ovo oco

Só sei que habitamos
um teto de aranhas
a tecer negras nuvens
em torno do sonho

O verso nos sustém
a forma e o susto
porém nos liquefaz
se continuamos surdos

Não é bem o espanto
que nos causa medo
e sim o próprio pranto
no travesseiro

Pior, antes do pranto,
o gesto da direita
apalpando a ausência
da companheira

2.

O passado é um olho podre
que permanece atento

3.

Se estamos, é porque existe espelho
e nós, hirsutos, frente a frente a ele
curtindo o que de nós ao rosto aflora
com a mão na madrepérola da navalha

aguardando a hora e o grito antecipado
para sangrar bem o túnel dos olhos
e fazer do sangue espesso rio vivo
distribuindo o espanto pelos fios